O Ladrão

Autor: Beto Campos / Ingredientes: , , , , ,

Ele corria o mais rápido que podia. Pular o muro do palácio foi moleza. Escapar de toda a guarda da cidadela atrás dele agora que era um grande problema.

A manobra fora ousada, mas ele tinha de faze-lo. Algo tão precioso assim dentro das muralhas do palácio… ele tinha de tomar para si. Mas não era isso que passava por sua cabeça agora. Além das flechas, ele só queria despistar a guarda e entregar o objeto do furto o mais rápido a Abathos, que ordenara a tê-lo inteiro em mãos.

Entrou numa viela escura, rodopiou com pressa sobre seus calcanhares, agachou ao lado de um barril e olhou por cima dele rapidamente para ter certeza que não fora visto. Abriu sua capa com uma das mãos e com a outra retirou uma pequena bolsa branca de seda trabalhada, amarrada por um cordão dourado entrelaçado em pequenos buracos feitos na boca. Tinha que ter certeza que estava intacto, apesar da correria. Seus olhos atentos deixaram de fitar o saco por um segundo e voltaram-se para a curva da viela. Latidos de cães e vozes. Os guardas se aproximavam, estavam varrendo rua por rua; viela por viela; beco por beco.

Apressou-se em esconder novamente o saquinho. Notou caixas de madeira empilhadas em cima de uma carroça, ao longo da viela, mas não conseguiria alcança-las sem ser visto rapidamente. Também não podia continuar onde estava e arriscar ser encontrado de costas contra a parede. Não havia escapatória. Havia de se mover.

Se postou de cócoras, dobrando os dedos dos pés contra o chão. Com as pontas dos dedos das mãos, se apoioi na parede, esperando o momento exato para gerar o impulso de sua última corrida. Ele tinha de escapar da guarda e tinha de arriscar manobras mais ousadas. As ruas não eram mais seguras e ele sabia que elas não foram feitas para ladrões habilidosos como ele.

Com um rápido movimento de seus dedos lançou-se para frente como um gato. Houve um momento surdo. Nem os latidos dos cães nem os gritos dos guardas poderiam ser mais ouvidos. Sua mente estava focada em seu equilíbrio perfeito e sua velocidade gatuna. Com dois largos passos alcançou a caixa mais alta e, com um pulo, esticou-se o mais que pôde. Alcançou uma barra de ferro, jogou suas pernas para frente, balançando-se violentamente e, numa graça sem igual, girou no ar, alcançando a borda de um telhado. Usou seus pés ligeiros numa parede mais próxima num último impulso, não antes de escutar uma dezena de flechas quebrando onde antes encontravam-se suas pernas. Olhou para trás, e com um sorriso sombrio, sarcástico, fez um breve aceno aos guardas antes de sumir nos telhados. Na noite.

Alcançara a liberdade. A borda que ele conhecia como a palma de sua mão, iluminada por uma lua minguante e um céu sem nuvens. As luzes eram bem-vindas. O escondiam enquanto pulava os telhados da cidade.

Pulou uma janela. Retirou o capuz de sua cabeça e andou pelo corredor escuro onde se encontrava. Respirava rápida e ofegantemente. Uma porta rangeu e estalou ao se abrir. Uma figura com vestes eclesiásticas postou-se em sua frente.

- Obteve sucesso? – perguntou Abathos.

Fez um sinal tímido com a cabeça. A figura estendeu sua mão, nervosamente.

- Rápido! – girou sob seus calcanhares com o saco de seda em suas mãos. Olhou para trás rapidamente, antes de adentrar a porta de onde veio – Está inteira?

- Sim – respondeu, seguindo os passos do padre.

Em uma cama jazia uma bela e moribunda jovem. Pálida, as veias de seu rosto se mostravam mesmo à luz tremeluzente das velas nas cabeceiras e das estrelas que entravam timidamente por uma janela estreita. Em um criado-mudo havia um almofariz e um pilão, usado para a moagem de ervas. O clérigo voltou-se com uma flor de pétalas largas, rijas e levemente azuladas em uma das mãos. A fitava com cuidado, girando seu caule com a ponta dos dedos, a fim de examiná-la em todos os ângulos.

- Nem uma pétala fora quebrada. Precisamos dela assim para fazer o antídoto. – antes de pô-la no almofariz.

A figura sombria do ladino postou-se de joelhos ao lado da cama e a mão reconfortante do padre tocou-lhe o ombro.

- Não se preocupe. Graças a sua coragem, sua Elsbeth ficará bem.

Lobos!

Autor: Beto Campos / Ingredientes: , , , , , , ,

Acompanhe o conto com esta música:


Se contorceu e franziu o cenho ao experimentar o sabor amargo daquela mistura cor-de-terra, mas não tanto quanto franzia e gemia de dor com a ferida aberta em sua coxa direita. Gemeu mais um pouco quando Balthazar, o curandeiro, tirou a goma mascada de folhas e outros ingredientes, que preferia não denominar, sequer lembrar, e socou na chaga para estancar a sangria.

O som do fogo bruxuleando ao vento e as luzes da tochas que se sacudiam freneticamente ao seu redor o deixavam tonto. Sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e arrepiou-se. Febre.

"Que tipo de males aqueles lobos carregavam em suas presas e debaixo de suas garras?" - imaginou.

Eles ainda os cercavam e, mesmo com seus companheiros de viagem brandindo espadas, escudos, tochas, não sentia-se protegido. Os lobos simplesmente não pareciam se importar ou ter medo.

O pulso acelerou. Balthazar proferia palavras ininteligíveis para um ser humano comum que se misturavam com o rosnado dos lobos, as tochas contra o ar, as batidas de seu coração frenético... A cacofonia surda que mais parecia os tambores do fim. A dança final com a dama de negro. O prenúncio da morte. Ele pedia isso, não mais suportava o sofrimento. Suas costas doíam cada vez mais. Sua face. Os olhos ardiam. Começou a arrancar as amarras de sua armadura que lhe impediam de respirar, estava cada vez mais apertada. Suas pupilas dilataram-se e Balthazar, horrorizado, caiu para trás, apoiando-se em um dos braços e tentando proteger-se, em vão, da visão aterradora com o outro. Sua ferida parecia não mais lhe doer, sentia-se forte e revigorado.

O silêncio parecia cair tão bem, que mal percebeu que era lua cheia. Fitou-a e uivou. Os lobos, assim como seus amigos assustados, andavam para trás, incrédulos, amendrotados com o que presenciavam. Os lupinos nunca viram um de sua espécie tão forte.

Pôs-se de pé. Era hora de uma conversa justa com seus pares.